1. Amiloidoses
1.1. Aspectos Históricos
A primeira descrição clínica provável de amiloidose data do século XVII e aconteceu quando Bonet descreveu um paciente com abscesso hepático, associado a um baço aumentado que continha numerosas “pedras brancas”. Em 1846, Rokitansky, ao observar pacientes com síndromes consumptivas com fígado com “aspecto de toucinho” e tumores no baço, foi o primeiro a salientar a entidade patológica destes achados.
Em 1854, então, Virchow observou que, aplicando a mesma técnica utilizada para corar o amido, estes “infiltrados homogêneos” do fígado e do baço apresentavam uma coloração azulvioleta, chamandoos assim de “amilóides”, ou seja, semelhantes ao amido, fazendo referência ao termo criado pelo botânico alemão Mathias Schleiden, em 1838, para descrever o componente amiláceo normal das plantas (LOBATO, 2006).
Poucos anos depois, em 1859, a natureza protéica da doença foi demonstrada por Schmidt, Friedrich e Keckulé, e, embora inadequada, a nomenclatura proposta por Virchow foi mantida.
A amiloidose abrange diversas síndromes clínicas caracterizadas pela deposição extracelular de uma substância protéica que, na dependência do local e da quantidade depositada, leva a um maior ou menor comprometimento funcional do órgão.
Em 1928, Gutmann realizou a primeira descrição de um paciente com características clínicas de líquen amiloidótico, enquanto, em 1930, Freudenthal, introduziu o termo “líquen amiloidótico”.15
Em 1959, estudos ultramicroscópicos realizados por Cohen e Calkins invalidaram o conceito primitivo sobre o caráter homogêneo amilóide, demonstrando que as proteínas amilóides são fibrosas e constituídas por fibrilas rígidas, não ramificadas (EICHBAUM,1979).
Pras et al., em 1968, permitiram a purificação das fibrilas de amilóide através do método de dessecação. Análises bioquímicas tem permitido a diferenciação de mais de 15 proteínas amilóides e a identificação de precursores fibrilares que, na maioria, são derivados das proteínas circulantes do plasma.16
Mais de 70 anos após, Divry e Florkin coraram os agregados amilóides com Vermelho Congo e observaram que estes, sob luz polarizada, apresentavam birrefringência verde, método utilizado, até os dias atuais, para o diagnóstico das amiloidoses (BOTELHO & LUPI, 2008).
1.2. Definição
As amiloidoses são um grupo heterogêneo de doenças caracterizadas por depósitos de proteínas fibrilares insolúveis em tecidos e órgãos. Dentre elas, incluemse diferentes patologias como a Doença de Alzheimer, a Doença de Parkinson, o Diabetes Mellitus do tipo II, além de várias formas de amiloidose sistêmica e localizada, como a amiloidose cutânea primária (BOTELHO & LUPI, 2008).
As amiloidoses sistêmicas e a amiloidose cutânea primária, por exemplo, são entidades patológicas totalmente dissociadas. No primeiro caso, existe depósito de proteínas amorfas e material amilóide preferencialmente na túnica média dos vasos e a origem deste material se dá na medula óssea e em células do sistema imunológico. No caso das amiloidoses cutâneas, parece haver uma simples degeneração do citoplasma do queratinócito epidérmico, célula do epitélio escamoso estratificado, talvez após traumas repetidos à pele ou excessiva exposição solar, com formação secundaria de material amilóide que se deposita logo nas papilas dérmicas, bem distante do local de deposição das formas sistêmicas.
Muitas doenças descritas no passado ainda conservam nomenclaturas ultrapassadas e que devem ser modificadas como no caso das amiloidoses; tratase de duas moléstias completamente distintas sob a óptica da fisiopatologia, clínica, diagnóstico, terapêutica e prognóstico, ou seja, tudo que caracteriza uma entidade patológica. A única conexão existente entre as amiloidoses sistêmicas e cutâneas é o fato de ambas terem depósito de material com característica tintorial de amilóide, fato que fez os antigos patologistas, classificassem estas moléstias tão diferentes com um mesmo nome. Seguindo esta mesma maneira equivocada, patologistas da mesma época em que as amiloidoses foram descritas também chamavam de “lúpus” moléstias tão diferentes como o lúpus eritematoso sistêmico, doença autoimune, e o lúpus vulgar, na verdade, uma tuberculose cutânea; o fato de dividirem a nomenclatura de “lúpus” não coloca estas duas doenças no mesmo grupo, obviamente, da mesma maneira que as duas formas de amiloidose claramente não são similares.
As proteínas envolvidas em cada uma das doenças incluídas no grupo das amiloidoses não são bioquimicamente relacionadas umas às outras, assim como possuem mecanismos fisiopatológicos distintos, mas, por compartilharem algumas características, como a birrefringência verde à luz polarizada após coloração com Vermelho Congo e a configuração em folhas β pregueadas à difração por raiosX, acabaram sendo reunidas em um único grupo.
1.3. Etiologia e Patogenia
A amiloidose é uma doença causada pelo depósito de um tipo de proteína extracelular, a chamada proteína amilóide (DHODAPKAR ET AL. 2000). Como conseqüência de diferentes fatores, ocorre uma sequência de alterações no dobramento de proteínas que induz o depósito de fibrilas amilóides insolúveis, principalmente, nos espaços extracelulares de órgãos e tecidos (SIPE & COHEN, 2006).
O processo de agregação de proteínas que ocorre na amiloidose resulta na produção de polímeros ordenados que formam protofilamentos e fibrilas com estrutura β pregueada (SELDIN & SANCHORAWALA, 2006). Esta estrutura consiste em várias lâminas de polipeptídeos, colocadas umas sobre as outras e dobradas sobre si mesmas, sendo cada lâmina ligada à seguinte por pontes de hidrogênio
(Figura 1) (ALBERTS ET AL. 1994; BOTELHO & LUPI, 2008).
A Figura 1 demonstra uma representação esquemática das duas maiores estruturas protéicas secundárias: (A) alfa hélice e (B) folhas β pregueadas. Os círculos vermelhos representam as moléculas de oxigênio, os cinzas, as moléculas de carbono, as azuis, os grupamentos de nitrogênio, e as brancas, as moléculas de hidrogênio. Em (A), as linhas verdes e os números mostram as distâncias entre as moléculas (figura reproduzida da internet: http://pharm1.pharmazie.unigreifswald.de/bednarski_web/web/data/ personen/Lectures/PMC/Wechselwirkungen/Alphahelix.jpg). Em (B), as linhas tracejadas representam as pontes de hidrogênio entre as folhas β pregueadas, e as moléculas de hidrogênio e os outros grupamentos laterais não foram mostrados para simplificar o esquema (BOTELHO & LUPI, 2008).
Figura 1 Representação esquemática das duas maiores estruturas protéicas secundárias.
Geralmente, as fibrilas amilóides, além de possuírem estruturas secundárias idênticas (configuração em folha β pregueada), apresentam uma ultraestrutura peculiar, contendo pentraxina amilóide P sérica (SAP), glicosaminoglicanos e a lipoproteína apoE, muito embora, também possam ser encontrados depósitos de proteína (por exemplo, no cérebro ou nos rins) que carecem da morfologia fibrilar clássica do amilóide e da presença de SAP (SIPE & COHEN, 2006).15
Anteriormente, acreditavase que era apenas o acúmulo de fibrilas no espaço extracelular o responsável pelo distúrbio físico e pela conseqüente disfunção no tecido circundante. Entretanto, teorias recentes sugerem que as lesões que ocorrem nos tecidos se devem a múltiplos mecanismos. Acreditase que não sejam apenas os depósitos de fibrilas na sua forma terminal que produzam a doença, mas também as suas estruturas precursoras e a maneira como podem interagir com as células, gerando toxicidade às mesmas (SELDIN & SANCHORAWALA, 2006). Assim, embora se fale de amiloidose como um grupo de doenças, fica evidente que cada doença possui suas particularidades e diferentes mecanismos fisiopatogênicos.
Aparentemente, sob certas condições, qualquer proteína, pode formar agregados amilóides, mesmo as proteínas não relacionadas a processos patogênicos. Tais condições podem ser o pH baixo, escassez de ligantes específicos, altas temperaturas e a presença de sais e cosolventes que desorganizam a estrutura original da proteína.17
O precursor protéico é uma proteína solúvel que sofre modificações que levam à agregação, polimerização, formação de fibrila e depósito extracelular nos tecidos, formando o amilóide insolúvel. Este último é resistente à proteólise, possui rica estrutura β pregueada e representa a etapa final da amiloidogênese.15,17
A amiloidose cutânea primária, tipos macular e liquenóide, apresenta uma teoria patogênica de que os tonofilamentos de ceratinócitos degenerados caem na derme, onde são convertidos em amilóides, por histiócitos e fibroblastos. Isto tem sido corroborado por estudos que demonstram formas transicionais entre ceratinócitos viáveis e amilóides e por reações positivas com anticorpos monoclonais dirigidos contra a ceratina dos ceratinócitos basais.15
A amiloidose cutânea secundária, ocasionada por depósitos secundários à tumores cutâneos e fototerapia por PUVA, também demonstra relação com as citoqueratinas.15
As amiloidoses cutâneas primárias, formas macular e liquenóide, e amiloidoses secundárias apresentam positividade à citoqueratina 5, encontrada nos ceratinócitos basais, e que é útil para o diagnóstico da doença. Outras citoqueratinas presentes na forma primária são CK5>1>14>10 e na secundária são CK5>1>10>14. Anticorpos pan CK e 34βE12 são próprias para corar CK5, CK1, CK10 e CK14 e, portanto, são utilizados para diagnóstico imunológico da amiloidose cutânea.18
Furumoto et al., realizaram um estudo em que a apolipoproteína E4 sintetizada por ceratinócitos epidérmicos demonstrouse importante na formação de fibrilas amilóides na forma cutânea.19
A amiloidose cutânea primária nodular é caracterizada por plasmócitos que infiltram a pele e são os responsáveis pela produção local e monoclonal de imunoglobulinas de cadeias leves dos tipos κ e λ (ALκ:ALλ = 1:2).15,18
A amiloidose sistêmica primária é causada pela produção monoclonal de imunoglobulinas de cadeias leves, lambda ou kappa, circulantes no sangue, e que estão sempre ligadas à proliferação monoclonal de linfócitos B. As cadeias leves do tipo λ são encontradas nos depósitos AL com maior freqüência que as do tipo
κ.15,16,18
A forma sistêmica secundária decorre de processos patológicos que determinam o tipo de amilóide a sofrer deposição. A variante mais comum é do tipo AA.18
Em 2009, Tanaka et al., realizaram um estudo sobre o mecanismo do prurido que revelou que 10% dos casos de amiloidose cutânea primária localizada são familiais e apresentam herança autossômica dominante. No locus 5p13.1q11.2, foi identificado o gene OSMR que codifica o receptor β da oncostatina M (OSMRβ).20
OSMRβ e IL31RA são expressos nos ceratinócitos, fibroblastos, nervos cutâneos e neurônios específicos da raiz do gânglio dorsal. Mutações em uma ou mais estruturas do OSMRβ, quando estimuladas por OSM ou IL31 ou ambas, iniciam anormalidades na sinalização via receptor OSM tipo II e/ou receptor da IL31 que levam à apoptose do ceratinócito (com conseqüente deposição amilóide), redução numérica de nervos cutâneos (possível apoptose) e, na maioria dos pacientes, prurido.20
Sakuma et al., 2009, estudaram duas famílias brasileiras com amiloidose dos tipos macular e liquenóide onde ambas demonstraram alterações histológicas e tinham o prurido como principal sintoma. Na primeira família foi detectada uma mutação no gene OSMR, porém na segunda família não havia mutação em tal gene evidenciando o fato de que a amiloidose é uma desordem genética heterogênea .22
1.4. Classificação
A amiloidose é caracterizada por ser uma doença de depósito de fibrilas amilóides insolúveis nos espaços extracelulares de órgãos e tecidos (SIPE & COHEN, 2006). Dependendo da natureza bioquímica da proteína precursora amilóide, as fibrilas amilóides podem depositarse localmente ou acometer praticamente todos os sistemas orgânicos do corpo, podendo não ter nenhuma consequência clínica aparente ou estar associado a alterações fisiopatológicas graves (LOBATO, 2006). Assim, as amiloidoses podem ser classificadas de duas formas: pela identidade da proteína formadora das fibrilas, como tem sido preconizado mais recentemente, ou pela manifestação clínica.
a) Classificação pela identidade da proteína formadora das fibrilas
Sabese que o padrão de depósito amilóide e, consequentemente, a sintomatologia da doença, estão relacionados ao tipo de proteína precursora, sendo esta, por sua vez, dependente da doença subjacente. Por conta disso, mais recentemente, tem havido uma tendência de classificação da doença de acordo com a natureza das proteínas precursoras das proteínas fibrilares amilóides (ÁLVAREZRUIZ ET AL. 2005), conforme detalhado na Tabela 1.
Tabela 1: Proteínas fibrilares amilóides e seus precursores.
SISTÉMICA (S) SÍNDROME OU PROTEÍNA OU PRECURSOR TECIDOS AMILÓIDE LOCALIZADA ACOMETIDOS (L)
Adaptado de SIPE & COHEN, 2006.
b) Classificação pela Manifestação Clínica
Classicamente, as amiloidoses são divididas de acordo com seu quadro clínico. Assim, se os depósitos amilóides ocorrem em
diversos órgãos, denominase amiloidose sistêmica, e se afetarem um único tecido ou órgão, denominase amiloidose localizada. Amiloidoses Sistêmicas
Em relação às amiloidoses sistêmicas, existem três principais categorias:
1. Amiloidose Primária (também chamada de amiloidose de cadeias leves (AL) ou amiloidose associada ao Mieloma Múltiplo) – resulta da formação de fibrilas por fragmentos de cadeias leves de anticorpos monoclonais Figura 1. Amiloidose primária sistêmica. Pápulas agrupadas em região periorbitária.
Figura 2. Amiloidose sistêmica primária. Extenso depósito amilóide dérmico (HE, 100x)
A estrutura primária de cada cadeia leve formadora de amilóide é singular, refletindo as características do clone de células B que a produziu (DHODAPKAR ET AL. 2000; SELDIN & SANCHORAWALA, 2006; SIPE & COHEN, 2006).
- Amiloidose Secundária (também chamada de Amiloidose por amilóide AA, Amiloidose reativa ou adquirida) – ocorre mais frequentemente como complicação de uma doença inflamatória crônica. Durante a inflamação, algumas citocinas inflamatórias estimulam a síntese hepática de amilóide A sérico, o precursor das fibrilas AA. Neste caso, o tratamento eficaz da inflamação subjacente bloqueia o estímulo para a síntese do precursor (SIPE & COHEN, 2006).
- Amiloidose Hereditária – associada a mutações que intensificam o dobramento inadequado das proteínas e a formação de fibrilas insolúveis. Envolvem diferentes precursores e, consequentemente, diferentes formas clínicas (SIPE & COHEN, 2006).
Amiloidoses Localizadas As amiloidoses localizadas ocorrem em órgãos isolados, sem qualquer evidência de comprometimento sistêmico e, assim como as amiloidoses sitêmicas, formam um grupo heterogêneo de doenças, com mecanismos fisiopatogênicos e manifestações clínicas bastante distintas.
Algumas formas descritas de amiloidose localizada são: (a) Doença de Alzheimer, onde há depósito de proteína β amilóide (Aβ) nas paredes vasculares cerebrais e placas neuríticas; (b) Amiloidose derivada de hormônios polipeptídicos, onde ocorrem depósitos amilóides em tecidos e tumores produtores de poplipeptídeos; (c) Amiloidose corneana localizada, associada a mutações no gene BIGH3 e depósito de ceratoepitelina (AKer) na córnea e (d) Amiloidose cutânea localizada, que será descrita a seguir.
Amiloidose Cutânea Localizada
A amiloidose cutânea localizada é uma doença relativamente comum e pode ocorrer nas formas: primária, com deposição de amilóide exclusivamente na pele e sem evidência de envolvimento sistêmico21; e secundária a processos infecciosos ou neoplásicos e não deve ser confundida com a forma sistêmica, relacionada à
maior morbidade.
a) Amiloidose cutânea secundária:
Não é raro observar depósitos amilóides associados a outras doenças dermatológicas. Nestas situações, as proteínas amilóides geralmente são vistas dentro do estroma das lesões associadas ou no tecido conjuntivo subjacente. As paredes dos vasos e os apêndices dérmicos não são afetados pelos depósitos, como nas formas sistêmicas. Várias são as dermatoses em que o amilóide pode estar associado, como: ceratose actínica, carcinoma basocelular e micose fungóide (HABERMANN, 1976).
b) Amiloidose cutânea primária, idiopática ou genuína:
A noção de amiloidose cutânea genuína (ACG) foi criada em 1955 (Amyloidosis cutis propria), onde a teoria de formas exclusivamente cutâneas começou a ser formulada (RABELLO, 1981).
Brownstein & Helwig (1970), nos Archives of Dermatology, no que diz respeito ao lichen amyloidosus and the macular variant, a atualmente denominada ACG, já faz a advertência de que não há necessidade de procurar amiloidose visceral, entre outros motivos, porque autópsias realizadas mostraramse inteiramente negativas quanto à presença de depósitos amilóides extracutâneos.
Um importante ponto que distingue a amiloidose cutânea localizada das formas sistêmicas é a histogênese da amilóide, que se apresenta de forma diferenciada. Acreditase que a formação da substância amilóide na amiloidose cutânea localizada se dê a partir das camadas profundas da epiderme, por degeneração de seus queratinócitos (BLACK, 1971). Esta característica histológica, longe de ser uma simples curiosidade, é o fator definidor da moléstia, uma vez que, por gerar depósito amilóide localizado e muito superficial, a amiloidose cutânea traduzse em uma doença pouco grave, localizada e de curso muito benigno e insidioso, totalmente diferente da amiloidose sistêmica, que possui depósito vascular, curso grave e agressivo, grande morbidade e péssimo prognóstico.
A amiloidose cutânea primária afeta cerca de 1 a 2% da população, apresenta maior prevalência nos países próximos ao equador e tem predileção sexual feminina (23/1 mulheres/homens). As formas macular, papular, maculopapulosa e nodular
representam 35%, 35%, 15% e 1,5% dos casos, respectivamente. Na Ásia, o líquen amilóide (75%) é mais freqüente que as formas bifásica (15%) e macular (10%).18 A amiloidose cutânea pode apresentar o fenômeno de koebner20 e apresenta quatro diferentes formas clínicas:
- a.
- Amiloidose cutânea primária maculosa: acomete preferencialmente mulheres entre 3060 anos; sendo comum na Ásia, Mediterrâneo, América Central e do Sul16; são máculas acastanhadas com tendência à confluência, aparência ondulada, pruriginosas, frequentemente simétricas e normalmente localizadas no dorso superior, principalmente região interescapular, extremidades, tórax e nádegas.21 Existem formas atípicas: discrômica, ictiótica, vitiliginosa ou pseudonévica.16
- b.
- Amiloidose cutânea primária maculopapulosa (bifásica): máculas e pápulas acastanhadas de distribuição linear, pruriginosas, normalmente localizadas na região interescapular. Faz diagnóstico diferencial com hiperpigmentação pósinflamatória, poiquilodermia, involução de processo inflamatório liquenóide e hiprecromias residuais em indivíduos atópico. Variantes incomuns: hiperpigmentação periocular, hiperpigmentação nevóide, distribuição ao longo das linhas de Blascko ou semelhante à incontinênica pigmentar.20
- c.
- Amiloidose cutânea primária papulosa ou líquen amilóide: apresenta maior freqüência na América do Sul, principalmente mestiços e caucasianos, e Ásia que na
Europa ou EUA.18 A idade de aparecimento é variável; são pápulas recobertas por superfície áspera e encimadas por crostas localizadas na região prétibial e muito pruriginosas. Podem coalescer em placa e se estenderem para coxas, face posterior das pernas, tornozelos, dorso dos pés e tórax (Figuras 3 e 4).21 Podem se agrupar como pequenas pápulas na concha auricular e região anossacral.20 A erupção é crônica e refratária à vários tratamentos. O principal diagnóstico diferencial é com o líquen plano, líquen simples e prurigo nodular .16,20
Figura 3. Líquen amilóide em região prétibial
Figura 4. Detalhes das lesões de amiloidose cutânea do tipo líquen amilóide
d. Amiloidose cutânea primária nodular: forma mais incomum; predomínio no sexo masculino, principalmente nas sexta e sétima décadas de vida ;24 lesão isolada, ou mais raramente múltipla, nodular, de cor cérea, variando de milímetros a centímetros, subcutânea, aderida aos planos superficiais, não pruriginosa e não dolorosa; localizada nas extremidades, face, tronco e genitália.21 Com a involução do amilóide o centro da lesão pode tornarse atrófico. Como há fragilidade capilar, pode haver ulceração aos mínimos traumas causando hemorragia cutânea .16 Já foi descrita em associação com diabetes mellitus, síndrome de Sjögren e síndrome de CREST.18 Considerada por alguns autores como uma forma de plasmocitoma extramedular. É lesão benigna, mas em alguns pacientes pode evoluir para
paraproteinemia sistêmica e amiloidose sistêmica (1550% dos casos)16, o que justifica o acompanhamento clínico .17
- e.
- Amiloidose cutânea primária poiquilodérmica: lesões maculares ou liquenóides que combinam com bolhas e poiquilodermia .18 Um trabalho recente de 2008, publicou uma forma familial desta variante poiquilodérmica. 23
- f.
- Amiloidose cutânea primária bolhosa20
- g.
- Amiloidose cutânea primária perfurante20
Amiloidose cutânea localizada – diagnóstico:
O diagnóstico da amiloidose primária cutânea localizada baseiase na história, exame físico e exame histopatológico.
Histologicamente, as amiloidoses macular e liquenóide apresentam deposição de amilóide na derme papilar. A epiderme demonstra acantose e hiperceratose .18 Há infiltrado composto por linfócitos e fibroblastos, assim como a presença de corpos colóides, que representam células apoptóticas, que são positivas aos anticorpos anticeratina, principalmente ao tipo II, incluindo a ceratina 5.20 Anexos e vasos sanguíneos são poupados. A microscopia eletrônica demonstra estrutura amilóide de aspecto linear e fibrilar. 16
A forma nodular demonstra depósito de amilóide do tipo AL em toda a derme, vasos sanguíneos, anexos e subcutâneo produzidos localmente por plasmócitos .24 Tal infiltração explica a fragilidade capilar e a ligação entre a amiloidose sistêmica e a amiloidose nodular.16 Infiltrado plasmocitário pode ser visto ao redor do material amilóide.16 Outros depósitos hialinos e eosinofílicos que fazem diagnóstico diferencial com o amilóide encontramse no milium colóide, na lipoidoproteinose e na porfiria.24 A imunohistoquímica demonstra depósitos de amilóide do tipo AL, derivado das imunoglobulinas de cadeia leve, e eles não são detectados pelos anticorpos anticeratina.16
Amiloidose cutânea localizada – tratamento:
As alternativas para o tratamento tópico consistem no uso de corticoesteróides tópicos associados ou não à antihistamínicos, corticóides intralesionais, calcipotriol, imunomoduladores (tacrolimus, pimecrolimus), agentes ceratolíticos (ácido salícilico) em diversas concentrações, formulações e outros agentes irritativos locais (ácido glicólico e retinóico) e fototerapia (UVBnb ou PUVA). O uso de dimetil sulfoxido tópico (DMSO), antiinflamatório, mostrou poucos efeitos benéficos no alívio da dor e prurido da amiloidose.17,18
Na terapia sistêmica observouse que o etretinato ou acitretin constituem opções para alívio do prurido e involução das lesões em alguns casos. A ciclofosfamida oral foi utilizada para um caso de líquen amiloidótico demonstrando redução do prurido, hiperpigmentação e lesões .17,18 Outras terapias sistêmicas incluem ciclosporina, pulsoterapia de dexametasona com ciclofosfamida, aciclovir e interferon α.20
Excisão cirúrgica, dermabrasão, crioterapia, eletrodissecação e curetagem, pulsed dye laser e laser de CO2 podem ser usados para tratar amiloidose nodular, porém as recorrências locais são
15,18,21
comuns.
A doença ainda permanece como um desafio terapêutico, não havendo nenhuma descrição comprovada de regressão da moléstia com qualquer destas modalidades terapêuticas.
Formas familiais de amiloidose:
Algumas amiloidoses são geneticamente herdadas, e mutações nas proteínas tem sido descritas para muitas destas formas familiais. Tais mutações nem sempre alteram a estrutura protéica, mas favorecem a agregação da proteína, resultando em acúmulo tecidual e na doença. Alguns exemplos são a doença de Corino de Andrade (polineuropatia familiar amiloidóticaI), causada por mutações na transtiretina; formas familiais da doença de Alzheimer, causada pelo peptídeo β amilóide e doença de Huntington, causada por huntingtina.17
Amiloidoses familiais se originam principalmente na América do Sul, Taiwan e sudeste da Ásia. Nos caucasianos, a amiloidose cutânea hereditária tem sido rara e existem poucos casos familiais descritos até agora. Em 2006, Lee et al. descreveram e reconheceram uma forma familial de amiloidose cutânea primária ligada a alterações no cromossomo 5.17,18
Febre familial do Mediterrâneo:
A febre familial do Mediterrâneo é a mais conhecida e a mais prevalente das desordens herdadas. Apresenta herança autossômica recessiva e seu gene MEFV foi reconhecido em 1997. Este codifica o aminoácido 781 conhecido como pirina e que tem papel na regulação da inflamação.4,15
Os grupos étnicos mais afetados são os árabes, judeus sefarditas e armênios. A principal característica são os episódios recorrentes de febre associados a serosites. Esta última pode se manifestar como dor pleurítica, peritonite, sinovite ou pericardite. Alguns pacientes desenvolvem um eritema semelhante à erisipela nos membros inferiores. Os episódios inflamatórios duram um a três dias e involuem espontaneamente. Os ataques ocorrem uma vez a cada 10 dias ou uma ou duas vezes ao ano. A complicação mais temida é a amiloidose secundária AA, que pode levar à falência renal em até 20% dos casos. No entanto, a introdução da colchicina 1,2 mg/dia, na década de 1970, tem se mostrado eficaz contra o desenvolvimento da amiloidose e age atenuando os episódios inflamatórios.4,15
Desordem reticulada ligada ao X (Síndrome de Partington):
Partington et al., em 1981, descreveu uma família canadense onde as mulheres apresentavam pigmentação acastanhada que mimetizava a incontinência pigmentar e os homens apresentavam o mesmo tipo de pigmentação, porém em padrão reticular. A doença é caracterizada por uma herança ligada ao X e, portanto, os homens apresentam manifestações severas como colite neonatal, diarréia, infecções respiratórias recorrentes, distrofia corneana e fotofobia. A histologia demonstrou depósito amilóide na derme papilar, melanina na camada basal e discreta hiperceratose. A autópsia em um paciente masculino de 50 anos que apresentava pneumonias recorrentes não evidenciou amilóide nos órgãos internos, mas sim na pele. Em 1993, os mesmos estudiosos localizaram o gene desta desordem da família de Ontario na região Xp22p21. Neste mesmo ano, Adès et al., estudaram uma família de descendência maltês com a mesma entidade clínica.25,26,27
De acordo com a literatura, não há relato de que drogas com ação antipríon sejam eficazes para o tratamento da amiloidose cutânea primária. Na verdade, doenças priônicas e amiloidoses guardam apenas uma correlação, que é a prevalência do depósito amilóide. No entanto, considerase o depósito de material amilóide como o fator etiopatogênico primário na amiloidose e um achado totalmente periférico e secundário no caso das moléstias por príons. É muito mais fácil listar a falta de semelhança entre ambos os grupos citados do que sua similaridade que se resume ao deposito amilóide. Listamos abaixo algumas das muitas diferenças entre os referidos grupos que mostram claramente sua origem, manifestação e evolução muito distintas:
- a.
- Amiloidoses cutâneas são moléstias benignas, localizadas e sem capacidade de disseminação, enquanto mínimas quantidades de material priônico podem ser mortais, têm tendência a disseminação e sistemização.
- b.
- Todos os métodos conhecidos de esterilização, exceto talvez a incineração, são ineficazes para material priônico, enquanto material amilóide é facilmente dissociado por proteases.
- c.
- Não há qualquer descrição de infecção com material proveniente de amiloidose cutânea, apesar dos muitos anos de biópsias de pele; da mesma forma, um paciente com amiloidose cutânea não transmite sua doença pelo contato com conjugue ou familiares, enquanto príons são comprovadamente altamente infectivos e transmissíveis por via oral, por material cirúrgico e biológico contaminado e, talvez, por ectoparasitas que infestam a pele (larvas de mosca, ácaros, etc).
- d.
- Histologicamente são doenças muito diversas. Nas infecções priônicas predomina a espongiose celular e apoptose, enquanto nas amiloidoses há uma simples deposição amilóide sem processo inflamatório detectável; apoptose não é observada e muito menos qualquer tipo de alteração celular como espongiose.
- e.
- No caso das doenças priônicas já há um amplo mapeamento o seqüenciamento dos defeitos genéticos relacionados e da predisposição a desenvolver a moléstia entre indivíduos homozigotos na posição 122 do gene príon para o aminoácido metionina. Nada similar foi jamais descrito no caso de qualquer amiloidose, seja ela sistêmica ou cutânea.
Apesar das múltiplas tentativas terapêuticas ao longo dos anos, como corticoesteróides tópicos, imunomoduladores (tacrolimus, pimecrolimus), agentes ceratolíticos (ácido salícilico) em diversas concentrações e formulações e outros agentes irritativos locais (ácido glicólico e retinóico), o tratamento da amiloidose cutânea primária permanece como um desafio terapêutico, não havendo nenhuma descrição comprovada de regressão da moléstia com qualquer destas modalidades terapêuticas atuais.
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